quinta-feira, 23 de abril de 2020

Coronavírus e saneamento: um olhar a partir de Belém e da Bacia do Una



Na manhã do dia 23 de abril de 2020, membros da FMPBU acompanharam o seminário online “COVID-19 e ODS6: a importância do saneamento básico para o combate ao coronavírus”, organizado pelas Nações Unidas no contexto do pacto global pelos ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável) entre os quais está a universalização do saneamento. A iniciativa encontra ressonância nos debates públicos recentes sobre o coronavírus em que o saneamento tem tido destaque, como apareceu em diversas reportagens nas redes virtuais:





É consenso entre os especialistas presentes no seminário online que o Brasil estaria melhor preparado para enfrentar a COVID-19 se nos anos recentes tivesse havido mais investimentos em saneamento básico e ambiental. Em geral, crises como desastres socionaturiais e pandemias potencializam e são potencializadas por problemas estruturais preexistentes. No caso da COVID-19, a crise em curso expõe as fragilidades nos setores da saúde e do saneamento, que por sua vez expressam as desigualdades sociais e regionais do país.

A COVID-19 está disseminada entre todos os grupos sociais no Brasil. No que diz respeito ao contágio dos organismos individuais, a doença é democrática. No entanto, as desigualdades de classe, gênero, raça e geração – considerando suas intersecções – são determinantes na distribuição social dos riscos de infecção e do acesso ao tratamento e cuidados. Uma das variáveis que compõem esse quadro de assimetria social é a cobertura das redes sociotécnicas de saneamento. Segundo a última pesquisa do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), em 2018, 35 milhões de Brasileiros não tinham acesso à água potável, o que equivale a 17% da população. Quanto ao esgotamento sanitário, 47% não tem coleta de esgoto, sendo que apenas 46% do esgoto coletado é tratado antes de ser despejado na natureza. Segundo o Instituto Trata Brasil, em 2017 foram realizadas 258.826 internações em virtude de doenças graves provocadas por veiculação hídrica, o que demonstra o problema do saneamento em sua relação com a saúde pública.

As desigualdades regionais aparecem quando, por exemplo, a região norte se apresenta como aquela em que, proporcionalmente, há mais internações por doenças de veiculação hídrica. Nesta região 43% da população não tem acesso à água potável, enquanto a média brasileira é de 17%. O último estudo sobre favelas no Brasil realizado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) considerou que a falta de coleta de esgotamento sanitário é uma característica tão generalizada nos municípios da Região Norte, que não pode ser usada como um fator de diferenciação de assentamentos precários. Não é coincidência que alguns dos estados mais atingidos pelo coronavírus estejam nessa região, como o Amazonas, Amapá e Roraima. As últimas notícias sobre o Pará mostram que, embora o número de casos nesse estado não seja tão elevado quanto nos outros, o sistema público de saúde – e também o privado – já entraram em colapso.

Este é um quadro alarmante, sobretudo quando a prevenção da doença está ligada principalmente a práticas de higiene que requerem acesso à água, como lavar as mãos e higienizar produtos e alimentos em casa. Além disso, estudos recentes apontaram que alguns pacientes apresentaram o RNA viral em suas fezes, o que remete ao problema do esgotamento sanitário. Durante o seminário online organizado esta manhã pelas Nações Unidas, a professora Drª Ana Freitas Ribeiro, médica infectologista do Instituto Emílio Ribas, explicou que o SARS CoV-2 é um vírus envelopado e que portanto não se multiplica no meio ambiente. Por esta razão, o vírus não foi detectado em sistemas de abastecimento de água. A especialista, no entanto, apresentou estudos sobre casos de potencial transmissão fecal-oral envolvendo o vírus SARS-CoV 1, identificado em 2003. O potencial de transmissão fecal-oral precisa ser melhor avaliado, principalmente sob condições extremas de vulnerabilidade social e insalubridade ambiental.


Feira de São Benedito em Belém. Passagem São Benedito entre Pedro Álvares Cabral e Rua do Canal São Joaquim, Bairro da Sacramenta,  Sub-bacia IV do Projeto Una. Acervo da FMPBU, 2020.

Nossa missão neste artigo é fazer uma reflexão com base na realidade de Belém e a partir de nossas experiências. Números recentes do ranking da universalização do saneamento confirmaram que Belém é a quarta pior capital brasileira em termos de acesso ao saneamento básico e ambiental. Segundo o documento da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental, 12,99% da população de Belém tem cobertura de rede de coleta de esgotamento sanitário, sendo que apenas 0,98% do esgoto coletado é tratado. O abastecimento de água também não atinge a universalização, chegando a 71,27% dos domicílios em Belém. A coleta de resíduos sólidos chega a 95,99% dos moradores, o terceiro pior índice do país, apesar do percentual elevado. Quanto à incidência de assentamentos precários, o último estudo detalhado calculou que 42% dos domicílios na Região Metropolitana de Belém estão em localização e contexto de assentamento precário. Trata-se da RM com maior percentual de domicílios em áreas precárias no Brasil, segundo o IPEA e o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Cena do Cotidiano em Belém. Acervo da FMPBU, 2020.


Os números ainda são insuficientes para avaliar as condições de vida e moradia das populações mais pobres em Belém. Moradores de áreas aparentemente saneadas e que passaram por grandes programas de urbanização – como a Bacia do Una – continuam sendo vítimas de inundações. Ou seja, por mais que estas áreas não contabilizem mais assentamentos precários, alguns problemas de antes ainda permanecem. Além disso, as inundações inviabilizam todos os demais investimentos realizados, comprometendo as redes de esgotamento sanitário e de abastecimento de água. Nas audiências públicas realizadas pelo Ministério Público Estadual e em reuniões com a Companhia de Saneamento do Pará, um membro da FMPBU sempre declarava: “o meu esgoto que sai no Canal do Galo (um dos 17 canais da Bacia do Una) e volta pra minha casa pela janela”. Consequentemente, quando sua casa inunda o morador também não pode usar a torneira ou utilizar o vaso sanitário.

Na Bacia do Una também precisa ser observado o problema da drenagem hospitalar no contexto da pandemia. Na área foram identificados pelo menos 19 instituições, como aparece na lista abaixo:

1) Hospital Geral de Belém (HGB - Umarizal)
2) Hospital Instituto do Coração (HIC - Umarizal)
3) Fundação Hospital Santa Casa (FHSC - Umarizal)
4) Hospital de Pronto Socorro Municipal (HPSM - Mário Pinotti - Umarizal)
5) Hospital Layr Maia (HLM - Nazaré)
6) Hospital Amazônia (HA – São Brás)
7) Hospital Ophir Loiola (HOL – São Brás)
8) Hospital Geral da Unimed (HGU - Fátima)
9) Hospital Rio Mar (HR - Marco)
10) Hospital Saúde da Mulher (HSM - Pedreira)
11) Unidade Básica de Saúde do Bairro da Pedreira (UBS - Pedreira)
12) Fundação Hospital das Clínicas Gaspar Viana (FHCGV - Marco)
13) Unidade Básica de Saúde do Bairro do Marco (UBS - Marco)
14) Policlínica Metropolitana do Pará (UEPA - Marco)
15) Unidade Básica de Saúde do Bairro da Sacramenta (UBS - Sacramenta)
16) Unidade de Pronto Atendimento (UPA - Sacramenta)
17) Centro de Atenção à Saúde em Doenças Infecciosas Adquiridas (CASADIA - Barreiro)
18) Unidade Básica de Saúde do Bairro da Marambaia (UBS - Marambaia)
19) Unidade de Pronto Atendimento (UPA - Marambaia)

As águas desses hospitais convergem diretamente para os canais da Bacia do Una, invadindo ruas e residências quando os canais transbordam. Logo, é necessário questionar quando há tratamento do esgoto dessas instituições e considerar a drenagem hospitalar enquanto uma variável potencial na disseminação do vírus em Belém.

          O momento mais crítico das inundações e a chegada do coronavírus praticamente coincidiram em Belém. No dia 15 de março de 2020, a prefeitura e o governo do estado decretaram situação de emergência por conta dos alagamentos, um fato sem precedentes na história da cidade. Dias depois, em 19 de março, foi diagnosticado o primeiro caso de COVID-19 no Pará. Naquele momento, a pandemia era apenas mais uma preocupação – ainda distante – para a população que habita as baixadas de Belém. Agora, não apenas os riscos do coronavírus se tornaram reais, como também as inundações continuam a ocorrer, porém sem a atenção de antes por parte dos veículos de comunicação e da opinião pública. O vídeo abaixo data do último dia 08 de abril.




O vídeo se localiza na Vila Feitas nº 5, uma passagem sem saída nas imediações do Canal do Galo (Travessa Antônio Baena) entre as avenidas Pedro Miranda e Marquês de Herval, bairro Pedreira, sub-bacia I do Projeto Una. É o perímetro do bloco F da Universidade da Amazônia (UNAMA). Observa-se que a água está quase a cobrir o batente de aproximadamente 1 metro em relação ao nível da rua. A água chega a invadir algumas residências, embora quase todos os moradores da vila tenham elevado o nível do assoalho para se proteger de repetidas inundações. No dia 18 de abril (o último sábado) o volume da água ultrapassou o batente e atingiu a geladeira que já estava erguida sobre um estrado de madeira na casa nº 5. Para estes moradores, a melancolia do isolamento da quarentena se soma à necessidade de conviver em um ambiente insalubre e destruído pelas águas da chuva e do esgoto.

Alagamentos e inundações afetam de maneira particular os mais idosos. Estes não apenas tem mais dificuldade de locomoção diante da invasão das águas, como também possuem menos força física para mover e carregar móveis e eletrodomésticos pesados que precisam ser salvos durante as inundações. Também estão mais vulneráveis se viverem sozinhos ou na campanhia de outros idosos. Durante a pandemia, inundações que prejudiquem a mobilidade urbana também são principalmente nocivas para os idosos, o principal grupo de risco para a COVID-19. Caso estes necessitem de atendimento médico, residências e ruas alagadas dificultam o acesso às unidades de saúde e isolam os doentes em relação aos cuidados profissionais necessários.

As doenças de veiculação hídrica também continuam a existir durante a pandemia. Parasitoses, diarréias, leptospirose e doenças de pele causadas pelo contato com águas contaminadas dos canais disputam atenção dos profissionais de saúde ou são simplesmente deixadas de lado em função das prioridades de uma situação de calamidade provocada pelo SARS CoV-2. Ao mesmo tempo em que o coronavírus chama atenção para a importância do saneamento nas grandes cidades durante a crise, também tem tornado invisíveis os problemas do cotidiano das baixadas que permanecem mesmo com a pandemia.

O saneamento esteve ausente dos debates públicos nos últimos anos, exceto pelas discussões em torno do PL 4.162/2019, recentemente aprovado, que facilita a concessão privada dos serviços de saneamento e prorroga o fim dos lixões. Na contramão da privatização do saneamento no Brasil, a experiência do coronavírus mostra que a água ainda precisa ser considerada um direito humano fundamental, não uma mercadoria. Sanemento é o mínimo existencial social, embora seja indisponível para grande parte da população brasileira. Nos hospitais, as doenças ligadas à falta de saneamento somam-se à COVID-19, agravando o problema da ausência de leitos e a situação de colapso dos sistemas públicos e privados de saúde. Por isso, ficar em casa durante a pandemia não é apenas se proteger, mas também impedir que o vírus chegue às camadas mais frágeis da sociedade. Não ouçam o presidente.


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